(advertência: para quem ainda não viu, eu conto o final do filme, porque sem ele eu não conseguiria dizer o que quero dizer)
Não sei o porquê, mas depois de tanto tempo, Noites de Cabíria me assalta a memória. Talvez porque Fellini precisa ser ruminado. Sempre saio de um filme seu com uma sensação de peraí, que será que esse doido quer dizer agora. Fellini sempre tem uma novidade, uma surpresa que nos espera doce e saborosa em cada final. E no subir das legendas aquela sensação boa de "meu deus" escorre entre lágrimas e estupefação. Mas vá, lá, vamos falar da Cabíria. O título é enganoso: Cabíria não que ensinar nada. Filme algum quer nos ensinar algo, em última e primeira instância.
Numa Itália do pós-guerra, a pobreza e a reconstrução são visíveis. A influência americana nos trajes e nas motos dos jovens também. Mas Cabíria não é mais uma jovem. Cabíria é do tipo de mulher com quem se casa. Do tempo em que se poderia tirar a "mulher da vida" (em sentido lato e estrito). O filme começa com ela sendo jogada em um rio. Às traças, ou aos lambaris, se preferir (nem sei se há lambaris na Itália). Ela mora em um casebre modesto. Mas seu. Em uma vila modesta. Com poucas casas e gente humilde.
À noite, Cabíria vai para a cidade trabalhar. Conhece um ator que a leva para jantar, e depois para sua casa. O homem a trata bem. E ela vai embora. Ainda há bondade no mundo? Marcante o episódio em que Cabíria e seus amigos vão à uma quermesse (há tais festejos na botina? vocês entenderam que é uma festa de igreja), uma procissão/romaria em louvor de algum santo. O fervor religioso impressiona, comove. Outra demonstração de ato de fé é quando uma procissão passa pela rua onde fica "o ponto". Cabíria e uma amiga a seguem a procissão.
O acontecimento cabal é quando Cabíria vai ver um espetáculo. Na saída é interpelada por um homem. Saem para tomar uma bebida. Começam a se ver com freqüência. Ela custa a crer que possa alguém de fato amá-la. Alguém que esteja disposto a compartilhar algo com ela, quanto mais uma vida. Mas, a nossa heroína não é dessas mulheres. Ela é ressabiada, cabreira. Tem medo. Sim senhores, ela tem medo. Quem não haveria de tremer quando no auge do frio alguém lhe lança uma acha de lenha às brasas quase dormentes e quietas?
A ingenuidade renasce. Eis que surge uma mulher feliz, alegre e saltitante, doce, incrivelmente doce. Da amargura inicial, agora ela se reveste de uma candura. A dureza do coração de Cabíria esmorece. E ela abandona tudo, junta suas economias e resolve partir com seu amado. Ora. Enquanto outras estórias nos contam a felicidade - oh a felicidade, esta ingrata serva de Maia – Cabíria se vê vítima de um golpe. Diante do abismo, físico (palmas para a fotografia) e moral, o que resta? A morte, pensou você? A depressão (veja os dois sentidos desta palavra, como bem aqui cabem ambos)? Mas a paisagem outra vez se transforma ela não é apenas o fim, é também o horizonte do provável, do porvir, a esperança, senão a fé? Cabíria é forte. Cai. Levanta-se, novamente endurecida. (obrigado Nino Rota) ah, a música, o circo. Que é a vida senão isso: um grande circo, um grande picadeiro onde nossos espetáculos são encenados; vestimos nossos narizes de palhaços e saímos fazendo piruetas para agradar o chefe, para ganhar o quinhão, pagar a cpmf, o iof, iptu, icms, ipi e o escambal (pode ser com "u", se quiser), engolir o pão de ontem; a miséria, a esmola de salário; as desilusões do amor e outras tantas. O circo também pode ter estes dois sentidos: a alegria efêmera, pseudo-felicidade, ou ainda como um remédio ou ponta de esperança quando tudo parece querer ruir. Vêm o palhaço e nos mostra que há sempre um sorriso gratuito para dar ou receber, seja sincero, ou não.
Luisandro
ps. Eu assisto Fellini como uma criança comendo pipoca no circo.
L. M. de Souza 11:49 AM