Eu podia falar de como fui parar lá por acaso. Podia dizer do quanto aquele lugar me fez ficar viajando nos desejos das pessoas ali presentes, nos códigos de conduta, na ânsia meio histérica de reduzir a mera diversão o labirinto perigoso que se abre sempre nos nossos encontros.
Talvez eu pudesse falar também de sintonia, de como você soube num primeiro olhar que se eu quisesse algo da noite seriam as minhas mãos, os meus dedos, a minha temperatura que me conduziriam (e de como você concordou num sorriso). Ou contar do inusitado jogo de olhares, gato-e-rato, o atrito dos corpos, a quase-luxúria pública. Todos em volta, a nudez e gemidos imaginados por nós e nós por horas entretidos na sinuca das sondagens.
Poderia mesmo narrar a parte divertida, minhas convicções indo por terra quando de um puxão para o beijo e o seu pau quase saindo da calça foi tudo muito rápido e eu nem pensei em nada. Dizer que daí em diante tudo ficou turvo e passou a existir ali só a minha boca, só o contato da carne pulsante e nada além do cinza dos seus olhos. Olhos boquiabertos.
E eu que estava indo embora, e eu que tanto arquitetei racionalizações me vi abrindo num único movimento o ziper e as possibilidades.
É, eu podia desfiar aqui cada detalhe do desfecho inusitado da estória. Ou ponderar que não fossem as pernas ainda bambas e a marca na curva do pescoço me desnorteando ali na escada, eu mesma custaria a acreditar que foi como foi.
Eu podia, sim. Mas hoje ainda é ... ah, o hoje... o frio congelou as memórias e prefiro deixar aqui só entrelinhas e desejo de ...
***
Ele veio e eu pude reparar direito, tão castanho, tão alto, que mesmo de salto ainda bato no peito dele.
Quando está frio ele fica com as mãos meio roxas e por qualquer coisa avermelha, seus olhos são azul-outro-mundo e me dizem, às vezes, que não enxergam direito, mas fitam todo movimento que faço, por isso sei que esses olhos gostam de mim.
Ele veio.
E todas as coisas saíram da sua ordem natural, não sei mais as coisas que sabia.
Esqueci o que li nos livros, lugares por onde andei, nem sei se estive em algum lugar antes.
Hoje só sei ficar com ele, com a ponta dos dedos tateando suas formas, suas marcas, tentando decorar cada milímetro da pele, fazendo carinhos suspensos, olhando... olhando... como se guardando um tesouro.
***
Tarde cinza, lembranças daqueles olhos, meio santos, meio bandidos, profanos, amor clandestino, estranho, amor, a presença dele sempre comigo e os pensamentos, tenho pensado coisas, a voz além do oceano, saudade ele diz, sorrio, ele sabe, cumplicidade de uma vida toda, duas vidas, não sei, um trecho de Caio e a dor ali à espreita, de tempos em tempos choque, de tempos em tempos faíscas, de tempos em tempos desejo, de tempos em tempos choro, madrugada insone, espera, é, parece que o espero (ainda e sempre) e a certeza que chega através da respiração-que-vem-de-longe-que-vem-abafada-que-vem-ofegante. Bobagens...
ludelfuego 11:29 AM